A Busca

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 Saída do mercado, todas as compras devidamente colocadas no porta-malas, você no piloto automático, não do carro, da vida mesmo. Dirige a caminho de casa pensando no menu do jantar. O diabinho, do lado esquerdo do ombro, sugere que você peça alguma coisa pronta, preguiça de cozinhar. Hoje é quinta, quase sexta, um disk qualquer coisa é justificável. O anjinho do lado direito logo interrompe: “Pô! você acabou de sair do mercado, opções são o que não faltam.” O debate do jantar é abafado por uma aceleradinha no coração. O estímulo vem do rádio. A música! Uma música do que parece ser milhões de anos atrás, lá da era de uma vida sem filhos. Um passado tão distante da realidade atual, que te faz cogitar se ele realmente existiu ou se você tá é mucho doida (de cansaço obviamente). Você para de pensar, afinal, não dá para desperdiçar esse flashback, vale a pena ver de novo, com pensamentos. Pensar você já pensa o dia inteiro.

  O farol fica verde e a pequena brecha aberta da janela deixa um ventinho entrar, balançando os seus poucos fios de cabelo, os que restaram depois dos doze meses de neblina (quem foi a desgraçada que escreveu o livro que me fez esperar por apenas sessenta dias?). O refrão começa, você canta, dança e interpreta, e a micro franjinha formada pelos cabelos novos, nos cantos da testa, também sente a brisa bater. Já nem se lembra de filho, marido, neblina, jantar. Tá é vivendo no universo paralelo das lembranças que só uma música é capaz de trazer. O coração viaja e sorri. E logo depois do último trecho, o radialista corta o barato, assume, e voltamos com a programação normal. Você então diminui o volume do rádio e, em silêncio, se pergunta: “Cadê essa pessoa? Para onde foi essa versão tão familiar de quem você era?”

  Era uma vez uma mulher, descolada, parcialmente antenada na moda, que gastava um pouquinho do seu tempo falando de assuntos aleatórios (que não incluíam as palavras criança, cocô e disciplina positiva), com pessoas aleatórias (não mães), que hidratava os cabelos no mínimo três vezes ao ano, frequentava aulas de ginástica localizada e afins, de vez em quando shows, jantares e cinemas. E que agora leva pra casa sacolas que contém farinha de aveia orgânica, pencas de banana, mandioquinha-salsa e biscoito de polvilho. Ela se pergunta se algum dia verá essa pessoa novamente. Será que a nova identidade, ou melhor, a falta dela, é eterna? Que os próximos anos serão vividos dentro da nuvem materna? Em pensamento chega a resposta: “um dia ela estará de volta.” Aqui entre nós, nem por um minuto você acredita nessa promessa.

  Sim, é verdade, parte dessa mulher ficou pra trás e ela não vai voltar.

  O encontro com um amor, potente como esse que mora no seu peito, exige maturidade. Um nível de responsabilidade que dificilmente condiz com tamanha leveza e liberdade. Contudo, a essência, essa não vai embora. Há fragmentos de quem você era que ainda existem, que estão por aí, temporariamente perdidos, escondidos atrás da doação, da rotina, da robotização do seu viver. A maioria das coisas que categorizamos como perdidas, não desapareceram para sempre. Ficam no lugar em que as deixamos, esperando para serem encontradas. O desafio mora justamente em ir procurá-las. Afinal, nem dinheiro em bolso de casaco reaparece se você não fuçar, se não for atrás.

   A cada filho que chega, colocamos a vida em pause. Pausamos por amor, pela conexão, pela adaptação, por sanidade. E tão fundamental quanto a pausa, é reconhecer o momento de apertar o play novamente. Por favor, não se deixe enganar, o tempo cura quase tudo, mas ele não é entregador de pizza, muito menos de transformação. O passar dos anos não irá te cutucar para dizer: “Ei, é aqui que tem uma mulher querendo se reencontrar?” É preciso agir. Até Deus deixou claro que precisamos bater na porta. É preciso movimento! É preciso dar o pontapé inicial e se comprometer com você. Se matricular no curso, desengavetar o projeto, agendar a viagem, assistir o tutorial. Lutar não contra os outros, mas contra a pausa que acabou virando inércia. Se dê essa chance e procure os seus pedaços. Eles podem estar nos locais e momentos menos esperados, como na música na volta do supermercado. Mas nem sempre será tão óbvio ou fácil. Por isso tenha coragem, coloque energia, vá buscá-los com garra.

  Você achará uma peça importante, no esforço em retomar a atividade física. Não para queimar pochete, emagrecer ou ter o corpo “de volta” (que preguiça desse termo), mas para se afastar das crianças por algumas horas, colocar o headphone com o som nas alturas e se reconectar com o seu corpo. Essa máquina maravilhosa, capaz, cheia de vida. E que é sua. Só sua. O coração pode não ser só seu, mas o corpo é. Esteja em sintonia com ele. Lute para estar em sintonia com ele.

  Você encontrará alguns fragmentos ao deixar o bebê com outra pessoa para ir almoçar com uma amiga. E sentir as maravilhas de ser irracional de uma maneira que só nós, mulheres, fazemos quando estamos juntas. Nas delícias de uma conversa com emoção, piadas, desabafos e gargalhadas.

  Outra peça fundamental irá surgir ao definir e se empenhar em projetos pessoais, seus. Vontades, não necessidades! Essas são duas coisas distintas. Se dedique às suas vontades. Pode ser um hobby, uma viagem, objetivos de carreira, um curso, uma prova. Quem sabe chegou a hora de finalmente se matricular na aula de yoga que há anos quer tentar, mas sempre encontra uma desculpa. Talvez yoga não seja a sua praia, talvez não caiba na sua realidade mas construir uma hortinha no quintal sim! Pode ser que aos seus olhos, bom mesmo seja juntar dinheiro para poder ver “téti-a-téti” o mar azulzinho de uma praia do Nordeste. Ou, quem sabe, aprender a falar italiano porque é sobrenatural de sexy. As oportunidades são muitas e os limites são você que dita. Não é essa a principal vantagem de ser adulto? Use e abuse desse privilégio.

  Ao juntar os retalhos, você irá perceber que, mesmo faltando algumas partes, não há buracos. Há saudade, sempre há, já falamos sobre isso. Saudade nada mais é do que a recompensa de um passado bem vivido. A ausência de determinadas peças, dará lugar a peças novas, que você jamais imaginou ter. O resultado é como dar boas vindas a uma mulher que é ao mesmo tempo familiar e diferente, que foi moldada, lapidada e fortalecida. E você percebe que, ao permitir que essa mulher ocupe de volta uma posição de destaque na própria vida, você não está tirando algo dos seus filhos. Na verdade, está devolvendo a você um pedaço que foi, é e sempre será, só seu.

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Este texto foi retirado do livro "É Fase" da autora Rafaela Carvalho, clique aqui para comprar.
 
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